Bem-vindos à nova era, a das crianças que
não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias.
Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?
Não fosse um sinal dos tempos e
consideraríamos ridículo escrever um texto sobre a importância de as crianças
brincarem. Afinal, não é isso o que elas fazem? A resposta é assustadoramente
simples: não. E não é o que fazem, sendo isso o que elas são. Nada mais
definidor da infância do que o brincar e, no entanto, nada menos preponderante
na infância destes dias, escolarizada até ao tutano, compartimentada em
atividades sempre organizadas pelo adulto, em casa sujeita ao regime de
trabalhos de casa-TV-telemóvel-tablet antes de deitar e, de manhã, começar tudo
de novo. Este ano, um filme patrocinado pela marca Skip entrava numa prisão de
alta segurança dos Estados Unidos
e mostrava um grupo de reclusos
perturbados com a mera possibilidade de se retirar uma hora às duas horas
diárias de tempo ao ar livre a que estão habituados. “Seria uma tortura”, dizia
um deles. Mas 70% das crianças têm menos de uma hora por dia de brincadeira,
concluiu um estudo da mesma marca. Menos, portanto, do que o tempo mínimo que o
Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos recomenda para
garantir o bem-estar dos prisioneiros.
“Temos uma criança mais centrada nos dedos
do que na locomoção, que é corporalmente passiva e sofre de iliteracia motora”,
diz Carlos Neto, investigador da Faculdade de Motricidade Humana. A estudar
este assunto há duas décadas, não constitui para ele novidade que as crianças
de hoje sejam mais frágeis, mais imaturas e menos capazes de se controlar e
autorregular. “As crianças são dotadas para brincar, é o seu estado natural.
Precisam de ser perseguidas, de perseguir, lutar, correr, esconder-se,
inventar. E a sociedade faz um esforço para as ter quietas e em silêncio”,
comenta o especialista. Num quadro de quase permanente institucionalização, em
que os mais novos passam na escola quase tantas horas diárias quanto um adulto
no trabalho — de 27,5 a 30 horas semanais nos 1º e 2º ano do 1º ciclo e até
32,5 horas no 3º e 4º ano —, a configuração do seu tempo livre nesse espaço
revela-se determinante. E a escola “ainda trata o recreio como algo avulso ao
processo de ensino”, sem perceber que “o tempo para brincar deve ser bem
estruturado e encarado como um contributo para se aprender dentro da sala de
aula”.
No jardim de infância a situação é
semelhante. Em Portugal, de fevereiro a maio — a estação invernal — as crianças
passam apenas uma média de 10,8% do seu tempo em espaço exteriores, mais
apetecíveis para a brincadeira livre. Este é um dos dados que constam do estudo
“Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância”, da autoria de Aida
Figueiredo. A professora da Universidade de Aveiro concluiu ainda que, nas
creches observadas, os bebés com menos de um ano só saíram ao exterior duas
vezes em quatro meses. O estudo serve também para comparar realidades
educativas opostas: se na Noruega, por exemplo, são exigidos entre 24,2 e 33 m2
por criança, em Portugal apenas são previstos 4 m2 por criança.
Quando é que o brincar livremente se
tornou a atividade mais rara, menos praticada, na vida das crianças? E quando é
que este quadro negro passou a ser encarado como normal? “O que não é normal é
não se olhar para as crianças como cidadãos com direitos, isto é, com direito
ao tempo livre e a fazer o que é próprio na infância: brincar, correr e
dialogar com outros”, frisa Maria José Araújo. Para esta especialista em
educação e professora no Instituto Politécnico do Porto, chegamos a um ponto em
que o ato de brincar é excedentário e conotado como “fútil” pelos adultos, cuja
ideia de competência “passa por estruturar a vida das crianças, não respeitando
as suas necessidades nem proporcionando as condições para elas poderem
brincar”.
E brincar está longe de ser fútil. “É uma
atividade completa, em que as crianças aprendem a decidir, a negociar, a
colaborar, a pensar e a criar; descobrem o que querem e como querem fazer;
elaboram e exprimem as suas fragilidades e traumas; e começam a ler a realidade
social, a interpretá-la e a agir sobre ela”, diz a investigadora. Pelo
contrário, o não brincar ocasiona danos profundos no ser humano: “Gera crianças
mais obesas, mais sentadas, com menos competências sociais e relacionais, mais
isoladas e individualistas, e que em adultos estabelecem relações mais
difíceis.” Promove, igualmente, uma pandemia de crianças cansadas e stressadas
que acabam sendo alvo de medicação. “Estes
miúdos vão para a sala de aula brincar, extravasar, porque não lhes foi dada
outra hipótese. Então, medicamo-los para que sejam mais concentrados. Ora, uma
criança que não brinca não aprende a concentrar-se”, reflete.
A neuropediatra, Manuela Santos, ressalva,
por sua vez, a diferença entre brincadeira e entretenimento: “Hoje em dia
vivemos o drama do tablet. As crianças habituam-se a olhar para um ecrã durante
horas. É como ir ao ginásio e só mexer uma perna.” Do ponto de vista do
desenvolvimento, esse tipo de interação com o mundo ‘enche’ a criança de
respostas automáticas, inibindo-lhe a criatividade e abrindo caminho para uma
maior incidência de problemas mentais no futuro. Carlos Neto aponta também a
fraca capacidade empreendedora e a escassa autoestima de quem em pequeno não
exercitou o brincar. E alerta: “A energia das crianças é natural e deve ser
tolerada pelos adultos. O ser humano não nasceu para estar quieto. Estamos a
criar monstros.
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